Jogos Vorazes, o best-seller, o filme as polêmicas. Confesso que vi a popularidade do livro crescer, vi os fãs debatendo na internet, mas só abandonei a letargia e fui ler o livro após ver o filme, ou seja, quando não dava mais para não fazer parte da onda. O que não é realmente um problema, afinal é uma excelente história. Pra começar, as críticas sobre o livro que valem a pena serem observadas, falam a respeito da prosa demasiado simples, da superficial descrição do cenário e da falta de profundidade dos personagens. Reflita sobre essas críticas, reconheça a validade delas, fique desapontado. Então as coloque de lado, pois ao focar na estrutura literária elas erram o alvo e falham em observar a vitalidade da história que Suzanne Collins conta. É aquela velha e empedernida discussão do que é literatura de verdade e o que é literatura jovem, ficção científica, ou outra categoria á sua escolha que é automaticamente classificada de "sub" literatura. Basicamente um elitismo rançoso que em nada contribui á arte de contar histórias.
Segundo a autora a inspiração surgiu ao surfar canais de televisão, onde cenas de reality shows e da guerra do Iraque foram se fundindo e dando início á ideia do livro. Outra fonte de inspiração seria o mito de Teseu e a própria autora considera a heroína de seu livro uma espécie de Teseu futurístico. Com base nessas duas fontes de inspiração, a televisão e o mito, a prosa simples e direta de Jogos Vorazes faz mais sentido. E também explica seu retumbante sucesso: fala uma linguagem familiar ao leitor moderno e apela ao mesmo tempo para a essência atemporal da mitologia. Em uma versão distópica e perturbadoramente próxima da sociedade em que vivemos, o labirinto é uma arena televisionada ao público e o minotauro é a monstruosidade de crianças e adolescentes matando uns aos outros em um espetáculo mórbido. Um programa de televisão que serve para lembrar ao povo oprimido o poderio do estado sobre suas vidas. O controle social pelo medo. Uma história familiar para alguns leitores de mangá...
Eu conheci Battle Royale, em sua versão mangá, que é baseada em um livro de mesmo nome do autor japonês Koushun Takami, publicado em 1999. Em 2000 foi lançado um filme baseado na mesma obra. Ao saber por alto da história de Jogos Vorazes, imaginei que houvesse uma inspiração, mas mais tarde vi que isso não procedia. Não existe qualquer plágio entre as duas obras, por mais que uma sinopse de Battle Royale soe praticamente igual a Jogos Vorazes. Como apontado neste artigo, há uma série de obras anteriores com temas semelhantes, bem como o próprio mito de grego que inspirou Suzanne Collins. Battle Royale é uma metáfora da sociedade japonesa tanto quanto Jogos Vorazes é da norte americana. Ambas as sociedades porém, vivem em função do capitalismo financeiro. Este é o ponto que torna os temas tão semelhantes.
Obviamente, nenhuma das duas obras citadas neste texto proclama uma luta contra o capital, buscando instaurar um socialismo utópico. O problema não é simplesmente o capitalismo financeiro, mas a sociedade altamente competitiva que ele gerou. Uma sociedade cujos integrantes devoram uns aos outros para permanecer no topo, ou se conformam com uma vida sem muitas perspectivas, em um trabalho maçante. Nós já vivemos em combate uns com os outros em muitos campos da vida. É só observar nas livrarias, como manuais de guerra ou de treinamento marcial são guias para ser bem sucedido na carreira. Ou livros elogiando o lado "construtivo" da inveja e da cobiça. Nossa sociedade tem um discurso de paz e tolerância, mas é excludente e belicista. Nós já estamos jogando nossos jovens uns contra os outros e talvez não nos demos conta disso. Já os jovens leitores de Jogos Vorazes já vivem algo muito perto da realidade do livro. Mesmo aqueles que não são vítimas de bullying nas escolas. Não ressuscitamos, ainda, as arenas romanas, mas televisionamos as guerras dos outros como um espetáculo. A distopia de Jogos Vorazes é perturbadoramente familiar.
O filme é quase fiel ao livro, omite detalhes importantes porém, inclusive uma imagem que torna a inspiração no mito do minotauro mais óbvia ao final da competição. As polêmicas levantadas nas escolhas das atrizes são indícios do triste reflexo da ficção na realidade, ou vive versa. Leitores racistas que "esqueceram" a cor da pele da personagem Rue, sentindo-se tragicamente traídos pela aparência do personagem com que se identificaram. Ou a sempre presente eugenia, com seu punho de ferro voltado para as mulheres, ditando que a atriz que interpreta a protagonista é demasiado gorda para o papel. Se no livro temos o poder opressor da Capital sobre os distritos, com sua própria etiqueta visual, em nossa sociedade temos a ditadura das aparências. Para não ficar com a impressão de que o filme é tão superficial quanto as polêmicas a respeito dele, é altamente recomendável ler a trilogia.
Na verdade, devido aos questionamentos que levanta, Jogos Vorazes é uma excelente leitura para refletir sobre a sociedade que vivemos e quão distantes da realidade estão os conceitos refletidos em utopias e distopias literárias.
Um comentário:
Meus parabéns, Demian, pela resenha. Ficou muito boa e aborta assuntos importantes do livro. Eu ainda não li a trilogia e a resenha é um convite para descobrir a estória.
Abração.
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